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sábado, 5 de março de 2011

COQUETEL MOLOTOV

Ginásio do Ibirapuera (SP) 10 e 11/06/88

Estádio Mané Garrincha (Brasília) 18/06/88

Mineirinho (BH) 25/06/88

São Paulo, sexta-feira, primeira noite. Este foi, provavelmente, o melhor show o Legião desde o começo de sua megaturnê, após o estrondoso sucesso de "Faroeste Caboclo" nas rádios de todo o Brasil. Renato inicia, como em todos os outros shows, com "Que Pais E Este?", levando logo de cara a platéia ao delírio, num coro que se seguiria durante todas às duas horas de espetáculo. Quase todo o repertório do Dois, as pérolas do primeiro LP mais as do terceiro, mesclando medleys que iam de Beto Guedes a Sex Pistols, Rolling Stones a Caetano, Titãs a Sisters of Mercy e Led Zeppelin a "Blue Suede Shoes". Até Cazuza. Todos estes covers pontuariam tanto os shows de São Paulo quanto o de Brasília e o de Belo Horizonte.

Para o bis, nesta primeira noite paulista, Renato reservou "Geração Coca-Cola", atiçando a moçada a destruir peças promocionais da Pepsi, aclamando: "Destrua, destrua! É multinacional!" Pop star? (como o chamaram os próprios leitores de BIZZ, vide seção de cartas). Qual tem a coragem de se dirigir tão ferozmente contra seu próprio patrocinador?

Segundo dia, sábado. A má organização da WTR já dava mostras desde o primeiro dia. Quase ninguém conseguia achar seu lugar devido à escuridão que reinava no ginásio, uma exigência da Pepsi para que seus infinitos vídeos e reproduções enormes de latas de refrigerante pudessem ser bem registrados em sua memória. Vem daí, talvez, o protesto de Russo. Poucos seguranças na porta. Poucos foram revistados. Resultado: logo após a primeira música, um imbecil de posse de uma garrafa de cerveja atira-a ao palco, passando de raspão pelo baterista Bonfá. Renato pede que acendam as luzes. A produção não acende. Ele pede uma, duas, joga seu violão ao chão e exige: "Acendam as luzes do ginásio, porra!!!" Acendem. Renato conta ao público o incidente da garrafa e, com um caco de vidro na mão, diz que todos receberão seus ingressos de volta e se despede: "Boa noite. São Paulo!" A galera aguarda vinte minutos. Renato volta, com as luzes acesas provavelmente uma exigência dele mesmo. Canta uma letra improvisada onde questiona o porquê dos jovens tomarem atitudes assim etc, etc. A certa altura, Dado fala com ele e Renato pede: "O Dado quer que apaguem as luzes", E o espetáculo reinicia, de fato, tomando força a cada canção. A galera parece esquecer o ocorrido. O show torna-se perfeito. No bis, mais uma vez "Geração Coca-Cola". Renato deixa o final do refrão para o público. A Pepsi não deve ter acreditado ao ver que patrocinava um evento no qual as vinte mil pessoas presentes gritavam o nome de sua concorrente. E ele se despede, emocionado: "O que aconteceu hoje foi inédito e histórico. Espero que vocês se lembrem disso com carinho... Que Deus proteja todos vocês!"

Brasília, sábado, único show. Uma hora antes de iniciar o espetáculo, adentro no estádio. À frente do palco, milhares de pessoas se comprimem em frente a uma estrutura de alumínio - tão resistente que bastaria um sopro para ir ao chão sustentada por canudos de papelão (!?!?). Há uns cinqüenta seguranças civis. Penso: "Não vai durar nem o primeiro acorde. Vão invadir". Nomes aos bois, vamos ao segundo: Agora Eles Produções...

Às 23h35 Renato sobe ao podium, dizendo: "Boa noite, Brasília. Nós vamos nos divertir, não é?" "Que País E Este?" agita a turma do gargarejo e os atendimentos de desmaios continuam... Até "Conexão Amazônica", tudo bem. Renato começa um discurso anti-drogas, bem ao seu estilo, contando sobre um pessoal chamado Clube da Criança Junkie que ele conheceu em Brasília e que se drogava a valer. No saldo, ele relata: "Dois sobreviveram, dois se casaram, um morreu e outro ficou assim (estiliza um esquizofrênico)". Foi neste momento que o tal paraplégico (foto), doente mental, fã ou assassino, fura o cerco de seguranças e agarra o pescoço de Renato, parecendo querer estrangulá-lo. Renato deflagra golpes de microfone para livrar-se dele.

Logo em seguida vem o primeiro objeto atirado ao palco. Renato se mantém calmo e só avisa que, se isso se repetir, vai parar o show. O show continua e outro objeto é atirado ao palco, desta vez quase acertando Dado. Renato alerta mais uma vez: "Isso é coisa de garoto que não consegue arrumar namorada e fica se masturbando no banheiro". O público ri.

Mais adiante, mais um objeto. Antes do novo petardo, Renato protesta com um segurança que está dando porrada num fã: "Mão na cara, não. Tira o cara na boa, mas mão na cara, não, senhor! Eu desço aí em baixo e lhe dou uma microfonada na cabeça, hem, meu!". Bem, mais um objeto é atirado. Renato cobra, então, cumplicidade daqueles que estão lá apenas para se divertir, "Você sabe quem atirou. O cara está do teu lado! Dá uma prensa nele, pó!" A cumplicidade não vem, e sim o quarto objeto - desta vez derrubando o violão de Renato da estante. Daí, sim, começam as cobranças de fato. Renato: "Quando vão atingir a maioridade? Eu me dei bem, estou aqui, ó, consegui chegar onde eu queria. E vocês?..." E completa: "Só por causa disso vamos cortar três músicas". E ataca direto "Faroeste Caboclo". Os objetos continuam. Renato ainda canta "Tempo Perdido" e, antes daquela que marca a última da noite, ainda tenta uma última palavra quanto ao comportamento do público: "Vamos cantar uma música que é muito importante para nós, e que tem tudo a ver com o momento de agora". Solta "Será", cantada em clima estático/estarrecido até as frases finais: "Será que vamos ter que responder Pelos erros a mais eu e você". E deixa o palco, seguido por seus legionários às 23h40. O pessoal espera pelo bis que não vem. As luzes se acendem às 24h e aí começa o final da baderna - coisas atiradas ao palco, tentativa de destruição dos aparelhos de som, queima do feltro que cobria o gramado e incentivos do pessoal da arquibancada com "Quebra, quebra!"

Antes do show já havia sido registrada a depredação de vários ônibus oriundos das cidades satélites para o show. Os portões foram literalmente arrebentados uma hora antes do show iniciar. A polícia, a cavalo, invadiu as filas e jogou seus cães contra a multidão, como foi descrito nas várias reportagens e nas próprias cartas dos leitores de BIZZ. Suicidas quebraram braços e pernas ao tentar pular um fosso de mais ou menos seis metros que separava as arquibancadas do gramado. Pelo menos 70% dos 385 ferimentos se deram nesse contexto. O governo do Distrito Federal, que antes do show utilizava os letreiros laterais do palco para fazer sua propaganda particular, saudando o Legião como "O Orgulho de Brasília", responsabilizou Renato Russo pelos incidentes. Mais. Proibiu, via Fundação Cultural, shows de rock em Brasília, como o do Detrito Federal, cancelado devido ao tumulto no show do Legião.

Depois, veio o batalhão de notícias. E as expectativas quanto ao show de Belo Horizonte. Lá, uma semana antes, pastores da igreja do Evangelho Quadrangular (sic) pregavam em praça pública contra a realização do espetáculo, referindo-se a Renato Russo como "o emissário do Demônio". Nosso colaborador, Arthur G.C. Duarte, também psiquiatra, foi procurado pelos jornais locais para dar sua opinião médica quanto a Renato Russo. Mas as filas não diminuíram para o show ao contrário. Algo em torno de 25 mil pessoas, com um aparato policial fortíssimo, assistiram ao espetáculo, que rolou na maior tranqüilidade, fora um ou outro desmaio e Renato Russo se despediu pedindo a seus fãs que não desistissem nunca.

Depois do ocorrido em Brasília, Renato veio conversar comigo, Tina, Xixa (EMI-Odeon) e Arthur Dapieve, do JB. Comentei: "Mas, Renato, deveriam ter armado o palco atrás do fosso..." E ele respondeu: Mas, Sônia, este é um lance da banda. A gente não quer tocar a quilómetros de distância do público".

É, ele peitou, sim, aqueles que quiseram peitá-lo. Cobrou uma cumplicidade dos fãs que não houve. Se ele tem culpa, é a de ter desejado se relacionar com 40 mil pessoas como se ele fosse uma delas. Um sonho, talvez.

Ele sabe que para o rock´n´roll sobreviver neste país depende, 90%, do público. Sabe que está cheio de neguinho esperando uma oportunidade para dizer: "Olha aí, está vendo? Rock é isso, incita a violência. Faz os jovens ficarem desajustados". O que, enfim, fizeram, dado o teor tendencioso das matérias publicadas.

Ninguém - ou poucos se propôs, na imprensa escrita e/ou televisiva, a fazer um paralelo com o futebol, por exemplo, cuja violência reina há séculos sem que nenhuma autoridade mova um só dedo, porque, afinal, a Federação é filiada a um órgão do governo, O tumulto, a raiva, a frustração de milhares de crianças e a orelha rasgada de uma mãe no show da Xuxa em 30/06/88 recebeu apenas uma pequena nota no Caderno 2 (SP) do dia seguinte. Quando algumas pessoas morreram num show dos Menudos, há algum tempo, pouco se noticiou a respeito).

Agora, todos estes são inofensivos ao dia-a-dia de miséria que vive o país. Renato não. Renato e seus legionários dizem, em suas letras, assuntos que o governo e as multinacionais querem distantes da consciência de qualquer um, ainda mais do jovem, força maior deste imenso Brasil.

Mas agora é tarde. 0K, podem quebrar todos os discos do Legião - como alguns jovens fizeram após o show em Brasília. As canções, porém, jamais sairão de suas memórias.