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terça-feira, 30 de novembro de 2010

OS SMITHS ESTÃO ENTRE NÓS

Nas lojas, seus discos vão sumindo das prateleiras. Nas FMs já correm soltos nas melhores programações, deixando a moçada com água na boca. De onde eles vêm? O que dizem? Será Morrissey algum semideus? Thomas Pappon Informa

Nos tempos de colégio, Johnny Marr gostava de usar roupas que deixassem as pessoas certas de que pertencia a uma banda de rock, e espalhava pela escola que ainda botaria um disco nas paradas. Hoje ele tem 22 anos, é o guitarrista predileto dos leitores e críticos das publicações inglesas de rock e também um dos responsáveis diretos pela música que deu fama ao grupo inglês mais falado do momento: os Smiths.
O outro responsável pelo sucesso do grupo, o cantor Morrissey (que aboliu o prenome Stephen), abandonou a escola aos 16 anos para manter uma vida reclusa em meio a livros e posters de James Dean, fundou um fã-clube dos New York Dolls e, dizem, passou boa parte do final da adolescência sentado na cama decidindo o que dizer quando ficasse famoso. Hoje ele tem 26 anos e é literalmente adorado pelos fãs do grupo. Marr e Morrissey realizaram um sonho conjunto: são famosos pelo que fazem, pensam e dizem.
Os dois compõem (música e letra, respectivamente) todas as canções dos Smiths, que é completado por Andy Rourke (baixo) e Mike Joyce (bateria). Lançaram seu primeiro LP em 84 pela gravadora independente Rough Trade. Intitulado simplesmente The Smiths, o disco entrou direto nos primeiros lugares da parada inglesa e eles foram aclamados como grande revelação do ano e uma das poucas atrações inovadoras e férteis da nova geração britânica. Ainda em 84 surgiu o segundo LP, Hatful of Hollow, uma coletânea de compactos e sessões de rádio gravadas ao vivo dos programas de John Peel e Kid Jensen, na BBC. Novamente, primeiro lugar nas paradas, sucesso de crítica etc. No ano seguinte, pintou o terceiro LP, Meat is Murder, e, mais uma vez, etc. Em meados do ano passado fizeram a primeira excursão pelos EUA e agora começam a ser conhecidos no Terceiro Mundo.
A WEA está lançando no Brasil quatro LPs dos Smiths, inclusive o último, que acaba de ser gravado. E eles são moralistas, detestam vídeo clip, sintetizadores, roupas extravagantes e ainda estão na Rough Trade. São um fenômeno musical e mais do que isso: a prova de que simplicidade e credibilidade são elementos capazes de conquistar os corações de milhares de jovens do mundo inteiro.
A simplicidade é o valor herdado do movimento punk: melodias simples, entrelaçadas por dedilhados e arpejos de guitarras sobrepostas. Assim como o punk deu um basta às sofisticações musicais do rock da década de 70, os Smiths deram um não às dissonâncias, às distorções, e ao pós-punk pesado e cada vez mais repetitivo. Nas guitarras de Johnny Marr, um manifesto de calor e otimismo, o contra-peso perfeito para os tristes apelos de Morrissey. E é aí que entra o coração, o sentimento, é aí que se fortifica a imagem do grupo, é quando aqueles que estão ouvindo se aproximam, porque crêem.
Morrissey fez o mundo acreditar novamente na sensibilidade masculina. De natureza introvertida, ele se expõe nas letras, fala de sua infância, amor, e dos valores prezados por quem teve uma adolescência marcada pela insegurança, como em "You´ve Got Everything Now", do primeiro LP: "Eu nunca tive um emprego! Porque nunca quis ter um!... Eu nunca tive um emprego! Porque sou tímido demais". Morrissey diz o que pensa, e é capaz de comover até quando assume a defesa do vegetarianismo, do qual é adepto há dez anos, em "Meat is Murder": "Esta linda criatura deve morrer! Uma morte sem razão! E morte sem razão é assassinato!... Você sabe como morrem os animais? / Aromas de cozinha não são muito agradáveis! Não é aconchegante animador ou simpático! E sangue quente e um odor profano! De assassinato".
Ao contrário da maioria dos astros da música pop que investem na imagem do "homem vulnerável" (Boy George, Marc Almond, Prince), Morrissey promove, segundo Jon Savage, da revista americana Spin, "a imagem do homem que revela suas emoções sem demonstrar fraqueza e que pode ser masculino sem ser machão". Lógico, tudo depende também de como as coisas são ditas e aí temos mais um ponto que intensifica o brilho da alma franciscana de Morrissey. Sua voz marcante, sempre em primeiro plano, flutua por melodias repetitivas, com divisões que lembram estruturas poéticas tradicionais declamatórias. Quem ouve ele cantar percebe no ato que ele tem uma relação real com o que diz, que ele de fato sente o que canta (permito-me aqui estabelecer um paralelo entre Morrissey e Renato Russo, da Legião Urbana).
E os Smiths são enriquecidos por sua cozinha, formada por Andy Rourke e Mike Joyce, dois jovens da geração de Johnny Marr (foi o próprio Marr que declarou à Melody Maker que, se Elvis Presley tivesse Andy e Mike o acompanhando, ele teria sido muito mais famoso do que foi). Por último, vem uma certa mistificação em tomo da cidade de onde o grupo surgiu, Manchester, o que faz lembrar no ato coisas como fumaça, sujeira, tristeza, solidão e bandas que interpretam tudo isso com, digamos, arte. Estes são o "Os Silvas", talvez a banda de rock mais importante da atualidade.

Morrissey - Entrevista

The Queen is Dead ("A Rainha Está Morta"), terceiro LP dos Smiths, foi recebido com uma generosidade de elogios cada vez mais rara na ranheta - porém criteriosa - crítica inglesa. Mas não é de hoje que o grupo é considerado o mais vital e consistente do universo pop. Antes de eles iniciarem sua excursão pela Europa e EUA - que tomou os meses de agosto e setembro - Morríssey recebeu Ian Pye, do New Musical Express, em seu luxuoso apartamento duplex, na parte mais aristocrática do bairro londrino de Chelsea. Dizem que o apê já foi inclusive habitado por Oscar Wilde, o que deve ter pesado na decisão da compra. Mas o que importa é que deste encontro saiu a entrevista mais reveladora do bardo de Manchester, traduzida com exclusividade para a BIZZ. Vamos lá!

A porta estava entreaberta. "Por que não?", pensei e fui entrando. O apartamento parecia se estender por mais de um andar e, sem encontrar ninguém no primeiro, subi as escadas até o segundo.
À distância, eu podia ouvir o refrão alucinado e circular de uma canção que tomou-se recentemente uma favorita pessoal. "Some girls are bigger than others, some girls´s mothers are bigger than other girls´s mothers´´. As palavras hipnoticamente repetidas ad infinitum.
Descobrindo o caminho, por um longo corredor discretamente decorado com carpete cor de aveia e pinturas a óleo em molduras douradas, comecei a perceber um outro som, igualmente consistente, porém menos refinado. O som de saltos ritmados talvez.
O lugar de onde vinha tudo aquilo era óbvio mas, uma vez na entrada, eu hesitei, tentando amenizar o impacto da minha intromissão. Na verdade, era tarde demais para pensar duas vezes: agora eu podia ver sombras tremulando na parede e o confronto parecia inevitável.
Essa imagem, refletida num imenso e ornamentado espelho divisado por ricas cortinas de veludo, era hipnotizante. Um louco redemoinho de material florido, rodopiando como um guarda-chuva aberto pelo vento. A figura girava dementemente sobre si mesma e, a cada pirueta, batia o pé no chão no ritmo da música. Ainda que os braços estivessem ambos levantados e arqueados, alguma coisa entre uma bailarina e uma saltitante escocesa, qualquer um poderia distinguir claramente o fio cor-de-pele de seu aparelho para surdez.
Eu nunca tinha visto Morrissey se divertindo tanto. Eu nunca o vi tão sorridente e satisfeito como agora. Eu dei uma daquelas estúpidas tossidas que servem para anunciar a presença... e a surpresa. Você está adiantado!", ele disse, parando meio sem graça. Eu tentei acalmá-lo com um comentário a respeito das suas pernas branco-peroladas e ambos olhamos para baixo reparando que ele vestia um saiote de bailarina. ´Finalmente se divertindo", arrisquei. Morrissey se divertindo?", pensei com meus botões.
"Se alguém souber disso, eu te mato!", rugiu ele, fugindo dos seus padrões normais. "Ok, ok", respondi, "no que depender de mim, você não vai ser pego embalado num saiote de bailarina!" "Não é por aí", ele me garante. "O que importa... o que importa é que eu jamais faria alguma coisa tão vulgar como me divertir."
Resolvi voltar numa outra hora. Morrissey vive elegantemente num dos quarteirões mais do bairro de Chelsea. Nada parece mais o lar de um gentleman inglês do que este. Temos que admitir que o enorme e preto gravador ghetto-blaster e o espelho de camarim, cercado de lâmpadas, tipo Nasce Uma Estrela, quebram um pouco o clima, mas o tom é decididamente clássico. Sherlock Holmes poderia ter morado aqui e talvez, fumando um pouco de ópio, em seu robe de seda, resolvido alguns casos. "Eu nunca poderia realmente viver num lugar, a menos que ele me agradasse em cada aspecto particular - esse aqui quase consegue", ele diz enquanto serve o chá cm xícaras de porcelana chinesa. "Se eu não pudesse ter uma mobília realmente boa, acho que dormiria numa caixa de sapatos." E, antecipando a resposta, acrescenta: ´ Na verdade, eu sempre fui assim".
Essa mansão alugada é o seu segundo lar. Ele ainda possui uma casa em Manchester da qual sua mãe toma conta, mas sua considerável coleção de livros, espalhada por ambos os lados da lareira de mármore, mostra que pelo menos metade da sua alma veio para Londres. Não encontro nada nas estantes que me deixe realmente surpreso. Wilde. Dean, Beaton, Kael, Delaney... um bandeiroso altar aos seus venerados ícones.
Obcecado como é pela cultura inglesa, perguntei se ele já tinha lido algum dos escritores ingleses contemporâneos. Ian McEwan, Graham Swift. Martin Amis. talvez? Ele me olha como se eu estivesse clinicamente insano. - ´Nem mesmo num dia de chuva, Quando se vê um nome como Leslie Thomas, a gente logo pensa que ninguém com um nome desses poderia jamais escrever alguma coisa de interessante." Quando chamo sua atenção para o fato dele ter sido responsável pela popularização do grupo com o nome mais impessoal da história da música pop. ele diz. com um cansaço meio afetado: - ´E, eu sei.. tem sido um grande esforço. Você tem, à sua frente, os restos mortais de um homem . E cai na risada,
Por outro lado, ele parece a imagem da saúde comparado aos dias em que apenas o seu topete parecia bem alimentado. Talvez, então, seja necessário acrescentar alguma coisa às suas velhas e familiares obsessões. E extraordinário que ele ainda esteja lendo os últimos livros sobre o caso Moors* ou sobre James Dean. Tudo isso é meticulosamente deliberado. "Sou muito seletivo´´, observa com um sorriso maroto. "Posso até chegar a Jane Austen, nem tanto Dickens. mas não suportaria alguma coisa ultrajantemente moderna."
Meu pedido para xeretar a sua coleção de discos foi negado. "Está guardada em Manchester. E o tipo da coisa que eu só faço em particular. Ouvir um disco é como aquelas pequenas coisas que se faz no banheiro. Quer dizer, eu poderia desprezar uma pessoa se encontrasse cem ela certos discos em particular, não importa quão gentil ela tenha sido comigo antes. Um LP escroto e eu já estaria chutando a pessoa nas canelas!" Aí tomei nota, mentalmente, para não esquecer de enterrar aquele primeiro disco de Madonna, caso ele resolva retribuir a visita. O resto da conversa apenas confirma que aquela imagem inicial de granito, atribuída a Morrissey no lançamento do compacto de estréia dos Smiths ("Hand in Glove". em maio de 83), tem sido cuidadosamente lapidada. Ocorre apenas que a estátua está quase condoída. Seus deuses estão guardados numa redoma de vidro: as preces também incluem George Formby. filmes ingleses dos anos 60 (especialmente A Taste of Honev), um sortimento de tragédias como o caso Marilyn uma cabeça completamente fechada para a maioria das músicas contemporâneas... "Esses discos tipo hip-hop OU seja lá como eles se chamam..." Vendo a capa do novo LP dos Smiths. Thc Queen is Dead, que beira a paródia mas também é um fotograma arquetípico de um sereno Alain Delon, é fácil perguntar como os Smiths poderiam um dia fazer algo realmente novo.
Mesmo assim, os compactos continuam saindo e, com a possível exceção de "Shakespeare´s Sistem" todos são preciosos. Os observadores atentos, porém. perceberam os tropeços. O longe e amargo drama de uma briga na Justiça com o selo Rough Trade atrasou o lançamento do LP por oito meses - bem rock biz, não é?
Lamentações que se refletiram no mercado pelas baixas colocações nas paradas e, pior ainda, no debilitante calvário dos grupos pop através do conhecido, universo chamado eufemisticamente de "problemas pessoais". Isto posto, para seus dedicados seguidores, os Smiths continuam sendo o único grupo com o qual vale a pena se preocupar e, pela primera vez, esses fãs não se enganaram. A primeira audição, The Queen e Dead pode parecer um outro exercício de consumada "Smithice". Afinal, nada mudou na superfície. Os mesmos arranjos, guitarra e bateria sem metais ou teclados, nenhuma guinada radical. Se o ouvimos mais atentamente, porém, descobrimos um disco tocado por uma visão lírica e musical que reduz a zero muitos dos seus contemporâneos.
Esses prazeres são mais elevados ainda pela sua raridade. O súbito aparecimento dos Smiths em 83 foi recebido como um grande alento. Três LPs e incontáveis compactos depois, ninguém os alcançou. O cenário independente já não é tão somente um gueto, mas um grande subúrbio do qual não se pode escapar. E os poderosos preservam seus domínios com um fervoroso senso do que é certo e o que é errado para o consumo da massa.
Enquanto exaltava grupos como o Easterhouse ou, antes dele, o Woodentops (que ele agora insiste em chamar de Sudden Flops - num trocadilho que quer dizer "Os Repentinos Fracassos", comentário que reflete não só o fim de suas esperanças como a campanha movida contra ele pelo grupo, que culminou com uma ameaça de bomba - veja só que mocinhos sérios eles são!), Morrissey adotou agora uma postura de extremo pessimismo, colocando o seu grupo como o ponto final na Babilônia do Rock.
"Mas que mais pode acontecer?" ele afirma realisticamente. "Existe ainda alguma coisa para acontecer? Não, porque a indústria está morrendo, a música está morrendo. É a mesma coisa se você olhar para a indústria cinematográfica, não há nada para acontecer. Todas as histórias da vida humana já foram contadas.
"Eu senti que ainda havia um último filão intocado e nós o exploramos. Agora que a fonte foi canalizada, ficou um deserto cultural.
"Mesmo que você deteste os Smiths, você tem que admitir que eles têm o seu espaço próprio, mas não é mais possível conquistar o seu próprio espaço. O fato dos Smiths terem conseguido isso já é por si só digno de espanto.
"Ou seja, eu estava doente e disse que estava doente. Ninguém nunca disse antes que estava doente. Dentro dessa síndrome do sexy e do bonito, eu popularizei os óculos fornecidos pela Previdência Social! Eu não cheguei a tornar popular o aparelho de surdez, graças a Deus, isso não pegou, mas foi uma das minhas colocações. Não uma prótese, porque isso soa como sapatos de marshmallow ou terno de bolinhas. Até hoje faço questão de afirmar que toda aquela coisa das flores** era muito criativa, nunca medíocre ou estúpida pode-se dizer sim, Morrisey aquele velho excêntrico consiga chegar onde cheguei. Todo mundo segue as mesmas regras e faz exatamente o que lhes dizem. Todos os grupos modernos fazem exatamente o que se espera deles - fluentemente, mas quem se importa?´ -
Vamos falar do novo LP?
"Mas por quê? Pelo amor de Deus!"
O novo disco dos Smiths começa com a faixa título e alguns versos de Cicely Courtneidge , uma lenta mas rebelde versão de ´´Take me Back to Dear Old Blighty" de The L Shaped Room. A música, assim como o filme, fala de um certo modo de ser inglês - na verdade, para Morrissey, um modo de ser inglês inestimável que se perdeu para sempre. Na cena original, Courtneidge representa uma esquecida performer dos tempos de guerra, vivendo seus últimos dias num decrépito apartamento em Fulham. Ela revive aquelas cançonetas meio esquecidas numa noite de Natal, cercada pelos novos cosmopolitas londrinos. E uma cena pesada e emotiva que evoca uma Inglaterra talvez mais gentil e certamente mais simples no seu charme. Um país que enaltecia conversas de humor inteligente, cartas bem escritas, lojas de esquina e melodramas teatrais.
No entanto, The Queen is Dead não é apenas uma lamentação ininterrupta. A rainha é usada como metáfora dupla para um mundo que se foi e para a herança sem sentido da monarquia em 1986. Trata-se também de um dos rocks mais excitantes que os Smiths já fizeram, com a música de Johnny Marr sugando o ouvinte para dentro de uma estonteante farsa negra.
"Eu não pretendia atacar a monarquia de uma maneira grosseira, como um bêbado", ele explica em seu cada vez mais sedutor sotaque de Manchester. ´Mas, à medida que o tempo foi passando, aquela alegria que a gente tinha foi lentamente se escoando e sendo substituída por alguma coisa completamente cinza e deprimente. A idéia da monarquia e da rainha da Inglaterra vem sendo reforçada de forma a aparecer mais útil do que realmente é."
Sugiro que o mais difícil de engolir, nessa história da monarquia hoje em dia, é a maneira como cada vez mais se utilizam dela como um tipo de camuflagem política. Há cinco milhões de desempregados? Então, tomem outro casamento real para vocês!
"E verdade. Isso é lamentável. Se você considerar quão mínima é a contribuição deles quando se trata de ajudar as pessoas... Eles nunca, sob qualquer circunstância, fazem alguma consideração sobre o mundo ou sobre a vida das outras pessoas. A coisa toda parece uma piada, uma piada de péssimo gosto. Não acreditamos em duendes, então por que deveríamos acreditar na rainha?
"E, quando olhamos para os indivíduos que fazem parte da família real, eles são tão magnífica, incomensurável e imperdoavelmente chatos.! Quero dizer, a Diana mesmo nunca na sua vida balbuciou nada que tenha sido de alguma utilidade para qualquer membro da raça humana. Se temos mesmo que conviver com essa gente horrorosa, por que eles não podem, pelo menos, fazer alguma coisa um pouco diferente?"
Mas se a família real realmente consegue alguma coisa é trazer turistas americanos para o país, o que como vocês podem imaginar - não é exatamente um motivo de júbilo para Morrissey. Na verdade, a coisa é mais profunda. Seu descontentamento com a nova Inglaterra é inflamado pela crescente americanização do país. Os mísseis, as lanchonetes, uma geração unidimensional desesperada atrás do sucesso produzido e padronizado. Arrastado contra sua própria vontade para o século vinte, Morrissey parece, em muitos aspectos, mais próximo à geração anterior à sua. De fato, ele não se importa em dizer isso. Para ele, o futuro é um pesadelo absurdo.
"Essas pessoas podem não ter o sentido do social", diz a respeito dos adeptos da sobrevivência nos anos 80, "mas, o que é mais importante do que isso, não têm o menor senso de gosto. E tanto mau gosto em todas as áreas e é isso o que mais me preocupa" Tudo isso começa a fazer Morrissey parecer um velho sentimental e nostálgico. Isso ele nega até à morte e, embora seja fácil simpatizar com a sua má vontade em relação à cultura yuppie e ao desaparecimento da gentileza britânica, na verdade ele parece gastar tempo demais olhando para o passado.
Eu mesmo sempre achei que ele estava um tanto crescidinho para cantar músicas sobre seus tempos de escola, como "The Headmaster Ritual", e "Meat is Murder" tem também sua queda pela poesia do colegial. Agora. em The Queen is Dead, com 27 anos recém-completos, ele aparece com música sobre sair ola casa dos pais! ´´Sim, sim, mas..." Ele diz com seu ronronado mais cativante e que, grosseiramente traduzido, ficaria algo como "tenha sua opinião, mas, pelo amor de Oscar Wilde, pense bem e veja se enxerga algum sentido nisto".
"Você não acha que, mesmo hoje em dia, certas recordações dos dias de escola ainda se agarram à gente e então, de repente, você se lembra de um dia em 1963 quando alguém fez alguma coisa completamente insignificante a você?"
Para ser honesto, isso não acontece comigo. Existe sempre uma recordação mais recente pronta para atacar.
Será que ele não percebeu que a maioria das pessoas da sua idade já assou pelas fases de fumar escondido, ter um romance e um casamento e já estão no estágio do divórcio e do segundo casamento? "E eu ainda estou esperando ser selecionado para a equipe de natação!"
"Mas eu sinto, de uma maneira absoluta, que tenho vivido como um sonâmbulo durante 26 anos. Nos momentos negros em que eu caía em mim, estava lendo o jornal. Veja bem, eu nunca passei por essas buscas triviais. O que eu fazia mesmo era ler todas essas revistas de música. Quer dizer, eu me lembro quando o New Music Express custava doze pence, eu me lembro quando o Disc custava seis pence. Eu me lembro quando você podia comprar todas as quatro publicações semanais de música por menos de 50 pence!"
Uma das lições que Morrissey aprendeu foi a do peso do sucesso. O veículo de suas reclamações é"Frankly Mr. Shankly", uma brilhante peça de music hall moderno que cuidadosamente contrapõe, a uma pergunta: você não estaria apenas se lamuriando a respeito da fama como eles sempre fazem?
"Sim! Como eles sempre fazem!" ele responde com um gesto extravagante. "Sim, eu estou me lamuriando", ele repete, acariciando a sobrancelha com as mãos mais melodramáticas da história do palco. "Eu já estava pegando na borracha, pensei, bem, não, quero mesmo é reclamar, eu quero mesmo é me lamentar. Reclamar é tão pouco viril, acho que é por isso que eu faço isso tão bem!"
Rindo cada vez mais: "Sim... ´Fame fame, fatal fame/ it can play hideous tricks on the brain´/ (´Fama, fama, fatal fama/ ela é capaz de pregar peças odiosas no cérebro´). E realmente estranho e tenho a impressão de já ter dito isso antes -meu Deus, de repente, quando alguém luta tão penosamente por alguma coisa e de repente ela parece transbordar dentro de si, então o prazer se mistura à dor. Não me entenda mal, eu ainda quero, eu ainda preciso da fama, mas...
"Mesmo que você receba 500 cartas de pessoas que dizem que o disco fez com que elas se sentissem completamente vivas - de repente, fazer alguma coisa espantosamente simples como acender uma vela pode ser mais intrigante, em um sentido perverso, do que escrever outra canção. Mas o que seria qualquer coisa se não houvesse dor?"
No passado, muita coisa foi tirada do estoque de heróis de Morrissey. Os espectros de Oscar Wilde e James Dean não apenas flutuam por trás dele, mas na verdade se incorporam ao seu inflamado e freqüentemente depreciativo humor, e o seu descuidadosamente despenteado topete é realçado pelo eterno jeans desbotado. A sua assimilação desses personagens pregou suas peças com o tempo e a imagem mas, mesmo assim, muitas dessas coisas - principalmente as relativas a James Dean parecem ser apenas uma cortina de fumaça.
As letras do novo LP, restritas corno são aos temas de estar em casa e sair de casa, não deixam nenhuma dúvida a respeito da identidade do verdadeiro herói ou heroína de Morrissey: sua mãe. Mas não é fácil falar sobre isso - não que ele não concorde com a minha sugestão - é que esse é um dos assuntos que ele prefere evitar na imprensa.
"Mentalmente, eu não acredito que tenha chegado a sair de casa", admite. "A gente sempre pensa que, medida que a vida vai seguindo, vamos abrir novas portas. Mas o que me chocou é que, na verdade, isso não acontece... Mas quem aceitaria descrever sua própria vida como um sonho ruim, Ian? Milhões de pessoas aceitariam. Só porque isso nunca foi colocado, não o torna implausível em dramático."
Para cada canção que explora a dor especial da solidão em The Queen is Dead - "If you are so dever why are your on you own tonight?" ("Se você é tão sabido, por que está sozinho esta noite?"), murmura ele magnificamente na cortante "I Know It´s Over" - existe um equivalente cômico para contrabalançar. É um alívio saber que mesmo o príncipe do sofrimento gosta de uma boa risada de vez em quando.
Trata-se, propositalmente, de um disco de extremos. Salta com despreendimento do trágico para o cômico. A faixa-título combina os dois ao mesmo tempo. Tendo invadido o palácio, ele confronta a rainha com uma rima mais ultrajante do que o crime que o inspirou: "And so I broke into the palace with a sponge and a rusty spanner! She said: Eh I know you and you cannot sing´! 1 said: ´that´s nothing you should hear me plaving piano´". ("Então, eu penetrei no palácio com uma esponja e um rodo enferrujado! Ela me disse: "Eh, eu te conheço e você não sabe cantar" / Eu disse: "Isso não é nada, você precisa me ouvir tocando piano").
Ele também ousa sugerir que o príncipe Charles deveria alegrar nossa existência com uma pitada de travestismo, e que. afinal, o clero vem fazendo isso há tanto tempo - provando, aliás, que a zombaria não é monopólio de jornalistas e feirantes.
Se você ainda tem dúvidas a respeito de sensibilidade humorística de Morrissey, deixe-me contar que seu programa favorito na IV é, atualmente. Cagney and Lacev. "Você não assiste? Então você está por fora.
Ele sempre reclamou que as pessoas são inaptas para enxergar o humor, e talvez isso explique a sua porção generosa no disco. Muito disso pode parecer negro de tão perturbador. os gestos de um homem condenado a caminho do cadafalso, mas, acima de tudo, o negócio funciona. "Cemetery Gates" - por exemplo, resolve ainda mais o júbilo e morbidez.
"É como aquele papo de ´famosas últimas palavras´. As últimas palavras de muita gente foram exuberantemente memoravems. Howard Devoto estava me contando uma vez - nós estávamos num cemitério, tínhamos decidido dar uma volta pelos cemitérios de Londres, festivos, incorrigíveis que somos, os dois, você sabe, vestir as botinas, pegar umas cervejas e marchar até o cemitério de Brompton - a história de um velho oficial da Marinha morrendo, afogado em sangue. tendo um ataque do coração muito artístico), enquanto seu braço direito dizia: ´Não seja idiota, Charles, levante, força aí, nós vamos para Bognor esse fim de semana. Ele vira para o cara e diz ´dane-se Bognor!´ e ´Dane-se Bognor´, foi gravado na sua lápide como suas últimas palavras. E um ótimo nome para um LP, ´Dane-se Bognor!"
No entanto, - "Cemetery Gates" não faz apenas piadas sobre túmulos. Ela se preocupa com o controverso assunto de plágio. Ele diz que sempre ficou feliz em admitir que havia pego emprestado um verso ou dois, a maioria de filmes. A Taste of Honev, Rebel Without a Cause (Juventude Transviada) e Sleuth (Jogo Mortal) são alguns que já inspiraram Morrissey.
Ele ridiculariza aqueles espíritos "retentivos anais" que pensam que fizeram uma grande descoberta e denunciam toda a obra de alguém como sendo deteriorado pela pilhagem. "E óbvio que a maioria das pessoas que escrevem pegam emprestado de outras fontes", ele contemporiza. "Todo mundo pega do varal alheio."
"O verso "I dream about you last of Honey e até hoje eu sou persistentemente acusado pelo uso desta frase."
"Eu nunca escondi o fato de 50% da razão de eu escrever dever-se a Shelagh Delaney. que escreveu A Toste of Honev. E ´This Night Has Opened my Eyes´ é uma canção tipo Taste of Honev, é a peça colocada em forma de letra de musica. Mas é porque eu levo tão a sério o ato de escrever que as pessoas dão tamanha importância ao fato de me passar uma rasteira.´´
Eu tenho certeza de que muita gente vai achar esse filão mórbido e depressivo, que percorre The Queen is Dead. duro de suportar. Desta vez, quem sabe o humor agudo de Morrissey possa aliviar a cara mas a maioria do material é gloriosamente negativista. Além do mais, não parece combinar com o moço relativamente animado que tenho à minha frente.
E quando digo que ele parece melhor e que ri mais do) que costumava. ele sacode a cabeça como se eu estivesse tentando atacar toda a base de sua carreira. "Você precisa de óculos´´. contesta.´ - Precisa olhar de novo."
"Não sou feliz, não mesmo ele murmura. "Eu conheço um monte de gente que nessa hora vai jogar a revista no chão e dizer: ´Bem. Morrissey, esta é a sua plataforma, este é o distintivo que você usa com orgulho como se você pedalasse alegremente à beira do abismo e. de repente, soltasse as mãos do guidão.
"Mas quase todos os aspectos da vida humana me defende seriamente... Eu realmente sinto que todos esses rótulos, o ´depressivo´, a ´monotonia´, todos os rótulos que evitei ou neguei estão provavelmente corretos. Se você me compara com o protótipo de estrela de rock e julga em comparação com essa atitude ultimamente débil. que é tão útil quando) se quer entrar na indústria musical. então, sim, eu sou depressivo. Se eu não estivesse fazendo isso, honestamente não acredito que gostaria de continuar vivendo. As pessoas evitam fazer esse tipo de colocação, porque sempre que alguém a faz não parece ter nenhuma utilidade."
Que alguém dessa natureza exista dentro da indústria pop britânica é, no mínimo, intrigante, mas, pensando bem, ele exagera um pouco. Para começar tomemos os próprios Smiths. Eles são capazes de lançar compactos com a rapidez de uma metralhadora, comparados aos seus esgotados rivais: e quanto à música, são pouquíssimos os que conseguem compor de uma maneira tão bela quanto eles, Tudo isso parece se contrapor ao opressivo peso da angústia.
O verdadeiro problema de Morrissey. ao que aparece, é um caso crônico de adolescência permanente. Da mesma maneira que ele se recusa a deixar o século dezenove, ele se recusa a sair de casa. "Eu sei", afirma com um tipo de rejubilante resignação. é uma desgraça nacional! Nós sabemos que há uma vergonha lidada a isso. Se você, aos dezenove anos, ainda estiver morando com seus pais. você é considerado um tipo de monstro de quatro olhos, com perna de pau e sexualmente reprimido - o que em última instância é absolutamente verdadeiro!"
A crise de riso histérica que segue é um colírio para olhos doloridos.
No passado, ele não teve piedade em criticar o Joy Division pelo seu suposto chic suicida". E quem irá negar que o grupo ganhou uma outra dimensão depois da morte de lar Curtis? Toda imagem tem um preço e os Smiths justificam a sua através da integridade artística. Mas é fato que algumas dessas canções não estão muito longe dos manuais esteticistas de saída pela morte.
A descoberta de que seis pessoas que eram tremendamente dedicadas aos Smiths" tiraram suas próprias vidas nos últimos dois anos sugere que isso não é um simples melodrama.
"Seus pais e amigos escreveram para mim depois que eles morreram", explica. "Isso é uma coisa sobre a qual não deveria ser tão difícil comentar, porque, se as pessoas estão basicamente infelizes e querendo morrer, então elas vão morrer.
"Embora seja difícil para muita gente aceitar isso, eu realmente respeito o suicídio porque ele é uma forma de controle sobre a própria vida. E o ato mais forte que uma pessoa pode realizar e as pessoas não são verdadeiramente fortes. Você pode dizer que é negativo deixar o mundo, mas, se a vida das pessoas for, antes de tudo, fértil, elas nunca vão pensar em se suicidar. A maioria, como sabemos, leva uma vida vazia e sem esperança."
"Eu não posso me sentir responsável.., não totalmente. Creio que, em muitos desses casos, no último período triste da vida dessas pessoas, pelo menos ter os Smiths foi de alguma utilidade para elas."
E ele, já pensou em se suicidar´? 183 vezes pelo menos. Eu acho que você atinge um ponto em que não dá mais para pensar nos seus pais e nas pessoas que você vai deixar para trás. Você vai além desse estágio e só consegue pensar em si mesmo."
"É o tipo de situação com a qual as pessoas podem facilmente brincar e achar romântico. Todos os grandes pop stars que não tinham importância para ninguém enquanto existiam deram com suas mortes uma coloração fascinante às suas vidas, Se, por acaso, a maioria dessas pessoas estivesse viva, ninguém iria se importar muito."
"Eu acho que o suicídio intriga todo mundo. E, ainda assim, é uma daquelas coisas sobre as quais ninguém nunca fala a respeito de maneira interessante. Você sempre acaba no velho ´Ah, é tão negativo, é uma atitude tão equivocada!´
Eu pergunto se essa fascinação pela morte não seria uma maneira conveniente de dar um sentido para nossas vidas quando deveríamos estar olhando para outras coisas. "Acredito que não. Tantas pessoas que eu admiro tiraram suas próprias vidas.. Stevie Smith*** , Sylvia Plath ~ , James Dean, Marilyn Monroe, Rachael Roberts***** ... São tantas.
Já das canções do novo disco, a deliciosa - ´Some Girls are Bigger Than Others" deve ser a mais evocativa poesia sobre o nada jamais escrita. Por alguma razão, todos os tipos de permutação passam pela nossa cabeça quando ela está tocando, uma hilariante gozação às fotos de mulheres nuas que torna impossível evitar a lembrança de que Morrissey não faz músicas sobre mulheres - a menos que se trate de sua mãe.
"Bem, existem músicas sobre mulheres", diz, antes de cair na risada de novo. "E só procurar e cavar fundo. Eu gostaria mesmo de escrever sobre mulheres. A idéia da feminilidade é uma coisa que para mim permanece inexplorada. Eu estou percebendo coisas sobre as mulheres que nunca percebi antes e ´Some Girls´ se refere ao absurdo de reconhecer os contornos do próprio corpo. O fato de eu ter passado vinte e seis anos da minha vida sem nunca ter percebido que os contornos de cada corpo são diferentes é um ultraje escandoloso!"
Existem ainda sinais de que ele possa um dia vir a crescer, embora eu não esteja querendo dizer que isso é uma coisa que deva ser encorajada. O mais longo período de celibato fora de um monastério budista foi quebrado. "Eu me enganei redondamente", ele admite. "Fui apanhado quando baixei a guarda, mas eu volto, lógico, mais triunfante do que nunca, para a mais implausível, inacreditável, absurda e necessária situação que pode acontecer a qualquer pessoa inteligente."
Já se apaixonou?
"Sim, não. sim, i1ãO, sim... e isso é o mais claro que eu posso ser!" Numa arena habitada pelos mais ridículos "monstros machos", os Smiths apresentam uma imagem que é absolutamente não fálica. A sexualidade que o grupo, na verdade, possui, é de um tipo muito mais natural do que aquela apresentada pelos marionetes da MIV fixados no baixo ventre. Nem todo mundo aceita isso. Quando o Smash Hits (revista pop popularesca da Inglaterra) insinuou que havia um certo interesse de Morrissey por Peter Burns (cantor do Dead Or Alive), eles aparentemente escreveram o que lhes veio à cabeça.
A entrevista entre Peter e eu foi completamente honesta e civilizada", lembra, ´´e eles nos transformaram em palhaços. Eu supostamente o teria chamado de Joan Coluns (atriz da série Dinastia)... Tudo foi completamente deturpado com simbolismos camp, quando não se tratava disso. Eu fiquei muito aborrecido.., muito aborrecido.., eles fizeram a gente parecer um casal de bonecas meladas." O que ele pensa dos símbolos sexuais à disposição no momento? Madonna, Prince, Boy George?
"Madonna representa obviamente tudo que há de mais absurdo e ofensivo. Feminilidade desesperada. Madonna está mais perto da prostituição organizada do que qualquer outra coisa. Quer dizer, a indústria musical é logicamente idêntica à prostituição. Mas existem prostitutas e prostitutas."
"Para mim, Prince não significa nada. O fato dele fazer sucesso na América é interessante apenas por que ele é levemente afeminado e isso não tinha acontecido antes, por lá. Boy George, também, eu acho que não tem nada a dizer."
Na sua posição única de marginais bem-sucedidos, os Smiths escapam do tipo de cobertura de imprensa que a maioria dos pop stars adora ou agüenta. Mas não faltam tentativas de revolver a vida deles para achar alguma "sujeira" -
A mais recente é uma biografia do grupo escrita por Mick Middles. Ela mistura anedotas com um tipo de mentalidade de detetive infantil, que apenas o mais ardoroso fã poderia saborear. Para Morrissey, foi uma leitura fascinante.
"Eu não espero encontrar esse livro em outro lugar que não seja a seção de ficção! Ele é tão permeado de imprecisões. (100, para mim, foi muito excitante. Eu aprendi muito. Se eu tiver alguma dúvida a respeito do futuro, tudo que eu tenho a fazer é dar uma olhadinha no livro para saber qual é o próximo passo. Nesse sentido, Mick Muddled trocadilho com Middles. quer dizer "embaralhado" foi de uma ajuda religiosa em mais de um sentido. Eu não tinha a menor idéia, por exemplo, de que em certa época iria empresariar o Theatre of Hate. Eu nem mesmo) sei quem são eles! Ou seja, para mim foi uma iluminadora compilação de fofocas!´´
Que os Smiths desejam fazer mais do que uma serenata para o crepúsculo do mundo é evidente, pelo recurso a urna temática recorrente que podemos resumir como uma reivindicação de carinho e compaixao.



Em função disso, e considerando que eles representam a sensibilidade de urna enorme legião de garotos espalhados por todo o mundo, é surpreendente que eles não tenham sido convidados para participar do BandAid. Ou foram? Segundo Morrissey, "ninguém que fosse mais jovem que Boh Geldof poderia chegar perto do palco, do contrário os Boomtown Rats corriam o risco de parecer uma coleção de brontossauros. Tampouco aqueles que não venderam um milhão de cópias foram aceitos. Será que os Boomtown Rats venderam o seu milhão? Se o fizeram, então trata-se mesmo de uma banda notável!" Nem mesmo a realização de eventos beneficentes posteriores tais como Fashion Aid ou o Sports Aid conseguiram alterar um pouco essa postura de escárnio. "As pessoas se deixaram o cegar pelo dinheiro", ele argumenta. "Fomos feitos de bobos por uma tramóia do show-biz!´5
"Se se tratasse de uma questão doméstica, duvido que o fato tivesse qualquer repercussão. Tenho certeza de que os organizadores iam se dar mal. Se a gente fala do desemprego na Inglaterra, ninguém dá a mínima. Creio que há muito mais glamour nesse épico etíope. Trata-se de algo distante, do outro lado do mar. Pop stars, gente de cinema, essa história foi e continua sendo mero escapismo."
"Evidentemente, esse glamour encobre uma questão mais grave, ou seja, considerando que o mundo é totalmente controlado, porque eventos como estes seriam permitidos? Mas eu também fico chocado com a culpa sendo colocada sobre os ombros dos ingleses. Quantas pessoas na Inglaterra não vivem em condições de pobreza absoluta..."
"Quando isso começou, senti um cheiro ruim e para mim ele continua. Estamos a um passo de Hollywood. Quando virá o filme´? O LP solo está saindo? O livro já está pronto? E a valentia de quem vai depois jantar com a realeza. Por que ele não sacudiu a Margareth Thatcher pelo colarinho quando teve a chance? Não... E ainda ter de ouvir o Bob falar tão amavelmente do príncipe Charies! Tudo isso para mim é muito irreal - E olha que eu nem usei a palavra ambição."
Enquanto isso, os Smiths tocaram amargo, mas eu não me senti assim tão terrivelmente comovido com a iniciativa´´, diz sorrindo. "Achei que o evento era uma coisa tipo meia-idade. E realmente eu não consigo ver nada especialmente interessante em Neil Kinnock (candidato do Partido Trabalhista a primeiro-ministro) - Não tenho nenhuma afinidade com ele, mas se as pessoas acham mesmo que têm de votar, parece-me que o nome dele é o mais apropriado. Eis o motivo da nossa breve, porém tempestuosa, apresentação.´´
"Quando subimos ao palco, o público pareceu tomado) de horror. Aí eles tiraram seus walkmans, jogaram suas malhas no chão e, de repente, o lugar parecia aceso, incendiado de paixão."
Juntos, conversamos sobre o futuro, a terrível besta dos mais negros pesadelos de Morrissey. Concordamos que provavelmente Margareth Thatcher acabará por nos matar a todos. A Rough Trade já não mais insistirá na produção de clips e os Smiths estarão. enfim, livres deles. Andy Rourke voltou à banda. Craig Gannon é o quinto membro dos Smiths, mas eles não estão se transformando nos Rolling Stones, estão só tocando com eles: Johnny Marr está trabalhando em dois projetos paralelos, um com Keith Richards, outro com Bryan Ferry. Existe já a perspectiva de duas turnês, uma na Inglaterra e outra nos EUA, bem como o novo compacto. "Panic". Talvez se possa dizer que tudo isso parece um tanto róseo. Cabeça caída para o lado, fruindo o conforto de sua poltrona favorita, Morrissey parece estar à vontade. O pobre diabo que carrega o mundo nos ombros parece, no entanto, radiante. Ele deixou a escola, saiu de casa (quase)... o que virá em seguida? Que tal um relacionamento com alguém?, sugiro à maneira de uma despedida.
"Eu queria dizer o seguinte", diz lentamente, num tom de confidência, "sempre acreditei que a minha genitália era algo como o desfecho cruel de uma piada idiota. Lembro-me de uma entrevista em que Gary Glitter deu ao NME no início dos anos 70, onde ele concluía fazendo uma observação sobre a permanente lembrança de que há algo entre suas pernas. Eu, então, pensei que talvez fosse apropriado encerrar esta com algo como... a permanente lembrança de que não existe absolutamente nada entre estas pernas!"
Isto certamente vai desapontar milhões de pessoas!
"Não creio, Ian... isso, sim, é muito desapontador pra mim."

* Série de assassinatos de crianças ocorridos em Manchester, no ano de 1996. "Suffer Little Children", do primeiro LP dos Smiths, é inspirada no caso
** Morrissey refere-se ao começo da carreira do grupo, quando ele andava invariavelmente com um buquê de flores nos fundilhos das calças, e fazia, durante os shows, chuvas de pétalas sobre o público.
*** Poetisa inglesa, nascida em 1902.
**** Poetisa americana.
***** Atriz inglesa, trabalhou no "Assassinato no Expresso do Oriente".

Morrissey no BR


A RAINHA NÃO ESTÁ MORTA

Ainda que o show do Echo & the Bunnymen, realizado no mesmo Opinião em que Morrissey se apresentou pela primeira vez no Brasil, tenha mostrado como é possível envelhecer com dignidade, e apesar de terem me garantido que o show da biba que mais sofre (sofria?) no mundo era muito bom, a indisfarçável desconfiança de que a apresentação do ex-Smiths pudesse ser mera nostalgia ou algo anacrônico como o cabelo espetado e "dark" do Robert Smith dos anos 80 era muito forte. Dos Smiths, aquela banda do vinil clássico de Truman Capote pulando feito uma gazela (Morrissey?) na capa, podia se esperar tudo. De Morrissey, uma década depois do fim da amizade/parceria com Johnny Marr, eu esperava pelo menos dignidade. Vi muito mais do que isso.

A impressão inicial de decadência na melhor linha Elvis (de um Morrissey mais gordo e de longas suíças) foi tão logo estilhaçada que já deu para ficar emocionado com os acordes iniciais da banda de rockabilly mais cool do planeta. Alegre como convém a quem atraca na capital sulista, Morrissey foi interativo ao ponto de eu questionar o quão falsa era sua tristeza gay dos velhos tempos de Smiths. Performático feito um crooner de cabaré sob um cenário de Twin Peaks, Morrissey justificou a fita gravada com "My Way" no final do espetáculo antes mesmo de ele chegar à metade. Lotado, o Opinião vibrava numa freqüência muito especial, entre o saudosismo e a satisfação, e as cinco canções dos Smiths interpretadas funcionaram como prêmio, nunca consolo. O Morrissey que Porto Alegre esperou tanto tempo para ver, ainda que sem os Smiths, desmentiu seu "everyday is like sunday" numa sexta memorável. Não por ser um ícone, mas por se manter um mestre do entretenimento. Não por recorrer a canções clássicas de sua ex-banda (e olha que isso é o que não falta), mas por recuperar para a minha memória a beleza poética de "Half A Person" ou destilar petardos do vôo-solo como "The More You Ignore Me" e arrancar lágrimas que eu não fiz a mínima questão de esconder (afinal, "boys don’t cry" é bobagem daquela outra banda bacana dos anos 80).

Em um teatro-bar com capacidade para 1 600 pessoas, eu vi Morrissey a poucos metros de distância e concluí que estava certo quando idolatrava os Smiths. Sua visita demorou. Mas não foi tardia.




Olympia, São Paulo (SP), 4/4

Assim como Elvis, Moz não morreu. Tanto nos corações dos fãs quanto no plano físico, ao contrário do rei do rock. Há grandes semelhanças entre ambos, como a idolatria desmedida, o eterno culto ao astro, os timbres de voz marcantes. Mas se Presley foi acabar balofo, cantando para endinheirados em boates de Las Vegas com aquelas roupas cheias de lantejoulas e golas ridículas, Morrissey ainda tenta preservar seu charme original dos tempos dos Smiths.
Claro que ele está com 40 anos, uns bons quilinhos a mais e até o topete - outra associação imediata com The Pelvis - anda meio ralo. Mas isso não impediu que uma legião de aficionados aclamasse incondicionalmente o ídolo no Brasil. Fui vê-lo em São Paulo, mas uma garota de Curitiba, conhecida de amigos meus, me ligou dizendo que tinha adorado tanto o show que estava voando para cá para vê-lo novamente. Pediu dicas de como se deslocar do aeroporto de Congonhas ao Olympia e chegamos até a marcar um encontro, mas ela acabou não vindo.

Este fato específico não foi único: vide as duas americanas que estão acompanhando a atual turnê Oye Esteban! pelo mundo afora, uma delas assistindo a mais de 70 shows do cantor. Sem falar na babação de ovos praticada pela imprensa em geral, para quem Morrissey é o "maior inglês vivo", "único", "incomparável" e por aí afora. Tudo isso fazia supor que aquele seria um espetáculo sensacional, inesquecível, imperdível.

OK, não foi bem isso o que aconteceu. O público do local não se restringia apenas a viúvas dos Smiths, na faixa dos 40: havia desde pessoas de mais idade até adolescentes que deviam estar nascendo quando o ex-grupo de Moz lançava o seu primeiro disco. Porém, todos comungavam na veneração total ao cantor, que não fez concessões ao público e apresentou praticamente um show padrão em todas suas performances por aqui.

Claro que as músicas de sua carreira-solo têm valor e são as coisas que mais se aproximam dos antigos trabalhos dos Smiths. Afinal, o que fez Johnny Marr desde que saiu do grupo, exceto acompanhar outros artistas e formar o esquálido Electronic, com Bernard Sumner, do New Order? Canções como "Ouija Board, Ouija Board", "I Am Hated For Loving" e "November Spawned A Monster" levaram a platéia ao delírio, devidamente escoradas pelas guitarras de Boz Burrell e Alain Whyte, que substituíram Marr a contento.

Mas a atração principal era a relação do cantor com seu público fiel. Flores, cartazes, álbuns de fotos eram atirados incessantemente ao palco e retribuídos por camisetas jogadas por Moz, imediatamente estraçalhadas pela platéia. Alguns gaiatos conseguiram até subir ao palco e só não foram retirados aos tapas pelos seguranças por interferência do próprio Morrissey. O cara pode até ser "sensível", mas grande parte de seus admiradores se assemelham a uma horda de fanáticos.

Em uma das poucas músicas dos Smiths em seu repertório, estava o libelo vegetariano "Meat Is Murder", postura que Moz assume radicalmente. Chegou a ser dito que ele pararia o show ou simplesmente não subiria ao palco se soubesse que estava sendo vendido algum tipo de comida com carne nas casas onde se apresentasse. No entanto, na lanchonete do Olympia uma funcionária informava que o cachorro-quente era R$ 5,00 e a porção de churrasco saía por R$ 15,00.

Celso Pucci

O SER E O NADA

Desde o lançamento de OK Computer, em 1997, o Radiohead tem freqüentemente sido descrito como o maior grupo do mundo. Na história do rock, esse título sempre trouxe mais desventuras do que vantagens, e para a banda inglesa não foi diferente. Thom Yorke (vocal e guitarras), Jonny Greenwood (guitarras), Ed O’Brien (guitarras), Colin Greenwood (baixo) e Phil Selway (bateria) terminaram a turnê mundial de OK Computer, em 1998, recebendo mais atenção do que procuravam. Em estado emocional precário, mergulharam num purgatório em que tiveram de enfrentar bloqueios para escrever, crises criativas, ciúme, tédio e dúvidas que culminaram no quase rompimento do grupo em fevereiro deste ano.


A tensão se dissipou em abril. O Radiohead, renovado e purificado, emergiu com o surpreendente álbum Kid A trazendo um novo conceito para as apresentações ao vivo, numa arena própria, que não permite logotipos ou propagandas. E desenvolvendo uma atitude que quer manter a distância da adoração do público, mas, paradoxalmente, pode acabar sedimentando no Radiohead a aura de lenda viva do rock. Parte dessa atitude é dar pouca atenção à imprensa e não lançar compactos para promover o disco, como é costume na Inglaterra. Uma das raras entrevistas para divulgar Kid A foi concedida à revista inglesa Q, que traz Yorke estampado na capa da edição de outubro. Ali é que os fãs ficaram sabendo das complicações e crises encaradas pelo grupo durante as gravações do novo disco.

Esperando o término das obras de sua própria ilha de gravação, o Radiohead entrou no estúdio em janeiro de 1999, em Paris, para começar a gravar seu quarto álbum. Mas Yorke não tinha nada guardado na manga e, para piorar, estava enfrentando um bloqueio criativo. "O réveillon de 1998 foi um dos pontos mais baixos da minha vida", disse ele. "Sentia que estava enlouquecendo. Toda vez que pegava na guitarra pintava um desespero. Eu começava uma canção, parava depois de 16 compassos, escondia tudo na gaveta para depois pegar de novo e destruir. Me afundava mais e mais."

Enquanto isso, o guitarrista Ed O’Brien desenvolvia a sua própria visão de como deveria ser o novo disco. Para ele, o caminho tinha de passar por músicas cheias de guitarras, com pouco mais de três minutos, numa antítese completa do OK Computer. "Estava incomodado com todas as analogias com o rock progressivo. Principalmente porque odeio esse tipo de música. Achei que a única forma de a gente fazer o contrário de OK Computer seria abandonando todos os efeitos e deixando as guitarras bem cruas", lembrou. Nada poderia estar mais longe do conceito desenvolvido para o disco por Yorke: "Não existia a menor chance de eu fazer um disco assim. Fiquei com o saco cheio de melodia. Só queria ritmo", definiu o vocalista.



TESTE PARA OS EGOS

Em março de 1999, a banda se mudou para um estúdio em Copenhague (Dinamarca) e começou a gravar fragmentos de som, trechos de canções sem começo nem fim. "Foram duas semanas horríveis. No fim, tínhamos 50 rolos de fita e cada uma com apenas uns 15 minutos de música. E nada estava pronto", recordou O’Brien. A lógica do processo só parecia funcionar para Yorke, mas os outros integrantes estavam aborrecidos. "Trata-se de gerar pedaços de trabalho que podem estar incompletos e não ir a lugar nenhum. E, na hora que você os termina, eles podem ser irreconhecíveis, mas bem melhores do que aquilo com o que você começou. É isso que eu estava tentando fazer, independentemente de onde a música vinha ou de que membros da banda estavam envolvidos", justificou o mentor.

A partir daí, a metodologia que viria a dar a forma a Kid A entrou em fase de desenvolvimento. Os músicos passaram a trabalhar como unidade, experimentando com a eletrônica e, em muitas faixas, alguns instrumentos foram dispensados. Como resultado, quase não há som de guitarras neste disco de uma banda que conta com três músicos dedicados ao instrumento. "Todo mundo se sentiu inseguro. Sou um guitarrista e, de repente, acontece de não ter guitarra numa determinada faixa, não ter bateria em outra. Eu, Johnny, Coz e Phil tivemos de nos acostumar a isso. Foi o nosso teste, eu acho. Será que íamos sobreviver com os nossos egos intactos?", questionou O’Brien.



SEM SAIR DO LUGAR

Não foi só a guerra de egos que quase pôs fim ao Radiohead. O processo de gravação foi muito cansativo e considerado demorado demais por alguns (principalmente por Jonny, o mais jovem e mais impaciente membro do grupo). Dezenas de faixas eram começadas e depois abandonadas para serem retomadas apenas seis meses depois. Apenas uma música, "Knives Out", levou 373 dias para ser completada e, ainda assim, não entrou na seleção final de Kid A.

Quando o Radiohead iniciou os preparativos para o álbum no interior da Inglaterra, em abril de 1999, a impressão era de que a banda não havia avançado um passo sequer desde o começo das gravações, em janeiro. O estúdio próprio ainda não estava pronto e, sem uma data final para terminar o disco nem pressão da gravadora, a busca ia seguir para sempre, sem chegar a lugar nenhum. "Humanos precisam de um senso de ordem. Quando há muitas coisas sem terminar, em quais você se concentra? Isso causa pânico. Várias vezes, tivemos reuniões em crise", revelou O’Brien.

Num desses encontros tensos, a banda decidiu que, se todos chegassem à conclusão de que não havia nada a ser feito, a derrota seria reconhecida e cada um seguiria o seu próprio caminho. No fundo do poço, o grupo resolveu dar uma virada. O momento mais crítico foi quando tiveram de aceitar que nem todos os integrantes iriam aparecer em todas as músicas. "Precisamos aprender a participar de uma canção sem na verdade estar tocando nenhuma nota", afirmou o guitarrista.

Com a situação finalmente entrando nos eixos, mais ou menos nessa mesma época o Radiohead descobriu a força da internet. O’Brien começou a escrever um diário das gravações no site oficial do grupo e rapidamente as atualizações sobre o progresso das músicas viraram notícias nas principais publicações. Aparições surpresa surgiram na rede, para a alegria dos fãs, que assim tiveram a oportunidade de entrar no universo particular do grupo no estúdio, por meio de discotecagens, bate-papos, teatro de bonecos e músicas novas mostradas com exclusividade. Em uma das atualizações no diário do site, O’Brien recomendou aos fãs que comprassem o livro No Logo (Sem Logos), da jornalista canadense Naomi Klein, que trata da invasão das marcas das grandes coorporações na vida moderna. O livro fez tanto sucesso entre os integrantes da banda que, por algum tempo, cogitou-se que o álbum receberia o mesmo nome. Foi daí que o Radiohead criou o conceito da atual turnê, uma gigantesca lona branca sem marca ou patrocínio de nenhuma empresa.



COLAGENS SONORAS

Concluído o estúdio próprio, a partir de setembro do ano passado o Radiohead passou a dedicar-se às músicas de Kid A em tempo integral. No dia 13 de dezembro o diário eletrônico de O’Brien anunciava que seis canções já estavam praticamente prontas. Seguindo a sugestão do produtor (e membro honorário) Nigel Goldrich, a banda dividiu-se em dois grupos. Um deles começava a criar uma seqüência ou loop ou até mesmo barulhos, e o outro tinha de continuar a música dali, mas sem usar instrumentos acústicos, como guitarras e bateria. "Quando dei por mim estava tocando um (teclado) Moog. Ou operando máquinas que nunca havia usado. Você literalmente se sente uma criança", exaltou-se O’Brien. Apesar de nenhuma das músicas dessas sessões terem entrado no disco, pode-se dizer que foi só então que todos entenderam as idéias de colagens sonoras que Yorke estava querendo dar ao álbum. "Acho que Thom faz parte da mesma linhagem de John Lennon, David Bowie. Ele tem um dom extraordinário", elogiou o guitarrista.

Com o término das gravações e o fim do inferno astral que pontuou o processo criativo, a banda planejou uma pequena turnê pela Europa em junho e julho para testar as novas músicas ao vivo, enquanto organizava a lista final das que figurariam em Kid A. Continuando com seu conceito anticomercial, os integrantes do Radiohead não permitiram que sua gravadora editasse singles do álbum ou forçasse a inclusão de alguma faixa na programação das rádios, para estimular a livre escolha das emissoras. No primeiro trimestre de 2001, o grupo deverá lançar um álbum com as 14 faixas que sobraram das gravações do disco ou EPs de tiragens limitadas com quatro músicas cada.

Kid A é provavelmente o último disco "tradicional" do Radiohead. De agora em diante, o quinteto pretende investir numa maior interatividade, usando principalmente a internet e lançando singles sem grande alarde. Pelo menos até segunda ordem. Se há uma lição a ser tirada de toda essa experiência, é que "certeza" é uma palavra que não existe no vocabulário de Thom Yorke.



O antimarketing da banda, que prevê shows sem marcas ou patrocínios, raras entrevistas e pouca atenção à mídia, pode funcionar como um eficaz meio de divulgação e sedimentar a aura de lenda viva do rock



Numa das tensas reuniões em torno do novo trabalho, foi decidido que, se todos chegassem à conclusão de que não havia nada a ser feito, a derrota seria reconhecida e cada um seguiria seu próprio caminho




Da angústia fez-se a luz
Radiohead / Kid A / EMI


Tudo faz sentido no quarto álbum do Radiohead. Pegue exemplos recentes e reflita: o que o Nirvana fez depois de Nevermind? O que o R.E.M. fez depois de Out Of Time? Kid A, com sua falta de poesia, com sua falta de guitarra, com sua falta de estrofes e refrãos, equivale ao que a brutalidade de In Utero significou para o trio de Kurt Cobain e à leveza semi-acústica que Stipe, Berry, Buck e Mills conseguiram com Automatic For The People. Ou alguém acha que não existe sofrimento em se tornar o maior expoente de um gênero musical, ser o progenitor da obra mais aguardada do ano? Ainda mais para uma banda que foi motivo de piada pela crítica quando apareceu com seu primeiro single nas paradas.

O disco é complicado? Sim, até indigesto, mas não deixa de ser envolvente e de esbanjar qualidades. Quem conhece mesmo Radiohead vai fazer com Kid A o mesmo que uma criança faz quando recebe um ovo de páscoa enorme, que pelo barulho indica estar cheio de bombons. A surpresa é que esse ovo do Radiohead é oco. Ou pode parecer.

Até o meio do disco, é possível arrancar exatas 19 frases completas e diferentes de Thom Yorke. Só, e com muito custo. A abertura, com "Everything In Its Right Place", é fenomenal, envolve pela repetição dos quatro versos. "Kid A", a seguinte, é incompreensível. A voz de Yorke passa por um vocoder do além que não dá a mínima chance ao ouvinte de entender algo. Faz lembrar Tortoise. Com uma linha de baixo ameaçadora, "National Anthem" prossegue a viagem com bateria jazzy e saxofones dissonantes. Bate uma vontade de chacoalhar o corpo como faz o vocalista, que completa mais duas frases. Vem "How To Disappear Completely", com cordas adulteradas, e o clima hipnótico e claustrofóbico da obra se acentua com os versos "Eu não estou aqui/Isto não está acontecendo". "Treefingers" não tem letra, só sobreposição de órgãos.

Aí você respira fundo, porque dos 50 minutos de duração só se passaram 25. "Optimistic" é a que mais se aproxima de algo que poderia tocar no rádio. E é bem quando você está pensando nisso que entra um epílogo chamado "In Limbo" e a canção bate os 8 minutos e 49 segundos. Não, não vai tocar no rádio. "Idioteque": essa pode até mudar o conceito das pessoas sobre o que é música, a obra-prima do Radiohead. Por cima de uma base eletrônica, Yorke parece estar narrando um acidente de avião ou de navio e põe o fã no meio da agonia. Alguns vão desligar o aparelho de som depois dessa. Outros ainda vão ouvir o loop humano de bateria que conduz "Morning Bell", as harpas e o clima Walt Disney de "Motion Picture Soundtrack" e uma vinheta, escondida e sem relevância.

Quem acompanhou o martírio que foi a confecção desse disco, talvez já estivesse esperando tamanha "esquisitice". "Ora, OK Computer não parecia nada fácil à primeira audição e foi o estrondo que foi", poderia se pensar. Mas, não. Kid A é um disco pós-Radiohead (recuse se tentarem vendê-lo como pós-rock). Aquele som que virou o som do Muse e de milhares de bandinhas mundo afora, não pertence mais ao quinteto que o criou. O Radiohead enxergou a situação e trilhou um novo caminho. Gênio.

Bonequinhos e nada mais
Se os cinco rapazes optaram por não ter single e escolheram fotos para divulgação em que estão de costas, com a mão no rosto ou se escondendo atrás dos instrumentos, o "descaso" com a imagem não poderia ser diferente nos clipes. Foram produzidas animações para as faixas "Idioteque" e "Morning Bell". Na primeira, a imagem de duas pontas de dedos ficam se mexendo em um fundo branco durante quase a totalidade da música. Até que o close vai se abrindo e o que pareciam ser pontas de dedos transformam-se nas pernas do bonequinho Kid A, o mascotinho inventado pela banda, que se assemelha ao que o Jesus Jones usava. Em "Morning Bell", um Kid A assume a bateria, outro o violão, até que todo o Radiohead fique representado pelos bonequinhos. O desempenho deles consiste no clipe. Simples assim.

Raspas e restos que interessam
O Radiohead produziu pelo menos 23 faixas no estúdio, das quais apenas dez foram selecionadas para entrar no disco novo. As descartadas acabaram num CD para o fã-clube, numa tiragem limitada. Confira o que ficou de fora:

"Instrumental"
Sem um nome fixo, esta faixa é um interlúdio instrumental composto basicamente de piano e bateria, com inserções de guitarras com efeitos fantasmagóricos e samples de pessoas conversando.


"Follow Me Around"
Balada sombria, começa acústica e depois do segundo refrão (que consiste em Thom Yorke gritando repetidas vezes "follow me around" - "me seguindo") ganha agitação com a entrada da bateria, para depois ficar lenta novamente e acabar com diversos efeitos.

"Nothing To Fear"
Baladona com a voz de Thom Yorke contrastando com um piano tocado quase sem ritmo.

"I Promise"
Mais uma balada, bem marcada por uma bateria marcial. O vocalista repete diversas vezes a frase
"I promise".
A música encerra com um barulhento solo de guitarra.

"Knives Out"
Quem assistiu a algum dos shows ao vivo do Radiohead na turnê do meio do ano apostava que "Knives Out" seria o primeiro single de Kid A. Não se sabe por quê, mas os integrantes da banda resolveram deixar a música de fora da listagem final do álbum. Pena, porque "Knives Out" traz um belo fraseado de guitarra, lembrando um pouco algumas músicas de The Bends, o segundo disco do Radiohead. Nessa versão, ela acaba com uma voz fina distorcida falando palavras sem nexo.

"Lift"
Outra música na fronteira entre a balada e o rock. Com um refrão pegajoso, também poderia perfeitamente ser um single de Kid A.

"True Love Waits"
Começa acústica, somente com voz e violão, e é uma das mais bonitas que o Radiohead gravou nas sessões de Kid A. Se estivesse no disco, tinha tudo para alcançar o mesmo sucesso de "No Surprises" ou "Fake Plastic Trees".

"Manowar/Big Boots"
Iniciando quase a capela, vai sendo preenchida aos poucos por diversos instrumentos e barulinhos engraçados, até cair num rock experimental levado por uma guitarra envenenada e um órgão que entram na metade da música. No meio, surge uma voz falando "fucking brilliant" ("maravilhoso"), entre outras coisas. Acaba com Yorke cantando "big boots" ("sapatos grandes") com voz chorosa.

"(Don’t Get Any) Big Ideas/Nude"
Gravada apenas com voz e violão, é uma balada que abre anunciando: "não vá imaginando muita coisa".

"You And Who’s Army"
Com um instrumental bem jazzy, lembra um pouco músicas de cabaré da primeira metade do século.

"Dollars And Cents"
Uma das músicas mais experimentais gravadas nas sessões de Kid A. Destaque para o baixo acústico que carrega a canção.

"Egyptian Song"
Outra com um instrumental puxando bastante para o jazz. Piano e baixo acústico se contrapõem à voz sofrida de Yorke.

KID B

Radiohead
Amnesiac


EMI



Para que qualquer dúvida se dissipe: Amnesiac é Kid A.

O Radiohead não guardou as músicas mais "fáceis" das seções do álbum de 2000 para serem lançadas agora, como alguns desconfiavam. As 11 faixas do novo trabalho são tão experimentais e esquisitas quanto as do anterior. Tão boas e envolventes também, só que agora não existe impacto.

A banda faz questão de dizer que não são sobras, que Amnesiac tem uma unidade, que é mais The Bends, que isso e aquilo. Dá para acreditar (ainda). Mas a verdade é que existem até músicas correspondentes entre esse e Kid A. A de abertura, "Packt Like Sardines In A Crushd Tin Box" é similar, inclusive na repetição de frases, a "Everything In Its Right Place"; a jazzística "Life In A Glasshouse" é prima-irmã de "The National Anthem"; "You And Whose Army?" é dançante como "Idioteque"; "The Morning Bell Amnesiac" é a continuação da outra "Morning Bell", embora com andamento e instrumentos diferentes. E "Knives Out", a música que mistura o primeiro-ministro Tony Blair com canibalismo e que demorou 365 dias para ser finalizada, é a balada pop, perdida no meio da esquizofrenia, como "Optimistic".

No fim das contas, o que prevalece é a estranha jogada de marketing do mentor Thom Yorke. Sem singles, clipes, turnês e com pouquíssimas entrevistas e fotos para divulgação, Kid A foi um sucesso de vendas (sem falar que todo mundo que gosta de música pop ouviu a pergunta "o que você achou do novo do Radiohead?" pelo menos uma vez no ano passado). Porque seria sucesso de qualquer jeito, a curva ascendente do grupo era visível. Para o lançamento de Amnesiac, o vocalista já confirmou que haverá lançamento de singles (a triste "Pyramid Song" começa, depois virão "Knives Out" e "I Might Be Wrong"), clipes, turnês, play-backs em programas de auditório e entrevistas que falarão sobre sua tortuosa e miserável existência. Vai manter a curva estável e iniciar a expectativa pelo próximo trabalho, que pode ser decisivo.

José Flávio Jr.

Melhor Artista Internacional do ano 2000

Radiohead

O que o Radiohead conseguiu fazer com mídia e fãs de rock no ano que passou foi algo espetacular. Destaque em todos os veículos de comunicação - mesmo avesso a entrevistas e promoções -, ofuscou o brilho do lançamento do U2, congelou o mundo para lhe entregar um álbum frio, sem refrãos memoráveis nem histórias de amor ou riffs de guitarras assoviáveis. Pior: Kid A levará anos para ser compreendido e muita gente tentará copiá-lo sem atingir êxito. Todo o esquema foi proposital. A idéia era complicar ao máximo, dar coceira na cabeça da platéia. Entraram numa viagem claustrofóbica e irônica de onde é difícil imaginar como e quando sairão. Até a home page da banda é de tétrica navegação. Ela é cheia de bifurcações e provocações - a área dedicada ao comércio de produtos com a marca Radiohead leva o nome de "desperdício".
O momento não poderia ser mais propício a toda essa onda. OK Computer, o terceiro disco, deixou o grupo numa posição confortável. Respeito entre os pares e boas vendas foram fundamentais para que a EMI patrocinasse a estocada de Yorke, Ed O’Brien, Colin Greenwood, Jonny Greenwood e Phil Selway. Foram horas e horas em estúdio, gastando dinheiro, perdendo material, gravando jams, gastando dinheiro, duelando com seus próprios egos, descartando melodias fáceis e gastando dinheiro. Colaram o resultado da aventura, escolhendo os retalhos mais experimentais, e entregaram aos executivos. "É o seguinte: não gravaremos clipes, não lançaremos single promocional, não queremos fotos nem letras no encarte e só faremos shows com a nossa própria estrutura" - deve ter sido mais ou menos esse o papo da banda com seus patrões.

A operação parece ter sido lucrativa. Até a EMI brasileira comemorou - foram comercializadas 10 mil cópias de Kid A só na primeira semana de loja. E o Radiohead ficou feliz, com seu disquinho sincero, esquizofrênico e genial. Deve continuar vendendo bem conforme as pessoas forem descobrindo seus encantos escondidos. Um dia, alguém vai pegar qualquer desses filmes da Disney e descobrir que existe sincronismo entre ele e Kid A. Ao menos, vai ter gente retirando a parte da caixinha do CD onde o disco vai preso para achar o segundo encarte que tem ali atrás (a edição nacional saiu sem isso).

Quem ousou pensar em jogada de marketing, quem inventou teorias diminutivas para justificar a não compreensão do álbum tem alta chance de ter errado em cheio. O Radiohead é um grupo no qual ainda dá para se confiar. É possível enxergar honestidade em seus atos e isso comove. Melhor aproveitar agora. Porque, um dia, eles vão fazer o que o U2 faz hoje. Mágica, como tudo nessa vida, não é para sempre.