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terça-feira, 30 de novembro de 2010

O SER E O NADA

Desde o lançamento de OK Computer, em 1997, o Radiohead tem freqüentemente sido descrito como o maior grupo do mundo. Na história do rock, esse título sempre trouxe mais desventuras do que vantagens, e para a banda inglesa não foi diferente. Thom Yorke (vocal e guitarras), Jonny Greenwood (guitarras), Ed O’Brien (guitarras), Colin Greenwood (baixo) e Phil Selway (bateria) terminaram a turnê mundial de OK Computer, em 1998, recebendo mais atenção do que procuravam. Em estado emocional precário, mergulharam num purgatório em que tiveram de enfrentar bloqueios para escrever, crises criativas, ciúme, tédio e dúvidas que culminaram no quase rompimento do grupo em fevereiro deste ano.


A tensão se dissipou em abril. O Radiohead, renovado e purificado, emergiu com o surpreendente álbum Kid A trazendo um novo conceito para as apresentações ao vivo, numa arena própria, que não permite logotipos ou propagandas. E desenvolvendo uma atitude que quer manter a distância da adoração do público, mas, paradoxalmente, pode acabar sedimentando no Radiohead a aura de lenda viva do rock. Parte dessa atitude é dar pouca atenção à imprensa e não lançar compactos para promover o disco, como é costume na Inglaterra. Uma das raras entrevistas para divulgar Kid A foi concedida à revista inglesa Q, que traz Yorke estampado na capa da edição de outubro. Ali é que os fãs ficaram sabendo das complicações e crises encaradas pelo grupo durante as gravações do novo disco.

Esperando o término das obras de sua própria ilha de gravação, o Radiohead entrou no estúdio em janeiro de 1999, em Paris, para começar a gravar seu quarto álbum. Mas Yorke não tinha nada guardado na manga e, para piorar, estava enfrentando um bloqueio criativo. "O réveillon de 1998 foi um dos pontos mais baixos da minha vida", disse ele. "Sentia que estava enlouquecendo. Toda vez que pegava na guitarra pintava um desespero. Eu começava uma canção, parava depois de 16 compassos, escondia tudo na gaveta para depois pegar de novo e destruir. Me afundava mais e mais."

Enquanto isso, o guitarrista Ed O’Brien desenvolvia a sua própria visão de como deveria ser o novo disco. Para ele, o caminho tinha de passar por músicas cheias de guitarras, com pouco mais de três minutos, numa antítese completa do OK Computer. "Estava incomodado com todas as analogias com o rock progressivo. Principalmente porque odeio esse tipo de música. Achei que a única forma de a gente fazer o contrário de OK Computer seria abandonando todos os efeitos e deixando as guitarras bem cruas", lembrou. Nada poderia estar mais longe do conceito desenvolvido para o disco por Yorke: "Não existia a menor chance de eu fazer um disco assim. Fiquei com o saco cheio de melodia. Só queria ritmo", definiu o vocalista.



TESTE PARA OS EGOS

Em março de 1999, a banda se mudou para um estúdio em Copenhague (Dinamarca) e começou a gravar fragmentos de som, trechos de canções sem começo nem fim. "Foram duas semanas horríveis. No fim, tínhamos 50 rolos de fita e cada uma com apenas uns 15 minutos de música. E nada estava pronto", recordou O’Brien. A lógica do processo só parecia funcionar para Yorke, mas os outros integrantes estavam aborrecidos. "Trata-se de gerar pedaços de trabalho que podem estar incompletos e não ir a lugar nenhum. E, na hora que você os termina, eles podem ser irreconhecíveis, mas bem melhores do que aquilo com o que você começou. É isso que eu estava tentando fazer, independentemente de onde a música vinha ou de que membros da banda estavam envolvidos", justificou o mentor.

A partir daí, a metodologia que viria a dar a forma a Kid A entrou em fase de desenvolvimento. Os músicos passaram a trabalhar como unidade, experimentando com a eletrônica e, em muitas faixas, alguns instrumentos foram dispensados. Como resultado, quase não há som de guitarras neste disco de uma banda que conta com três músicos dedicados ao instrumento. "Todo mundo se sentiu inseguro. Sou um guitarrista e, de repente, acontece de não ter guitarra numa determinada faixa, não ter bateria em outra. Eu, Johnny, Coz e Phil tivemos de nos acostumar a isso. Foi o nosso teste, eu acho. Será que íamos sobreviver com os nossos egos intactos?", questionou O’Brien.



SEM SAIR DO LUGAR

Não foi só a guerra de egos que quase pôs fim ao Radiohead. O processo de gravação foi muito cansativo e considerado demorado demais por alguns (principalmente por Jonny, o mais jovem e mais impaciente membro do grupo). Dezenas de faixas eram começadas e depois abandonadas para serem retomadas apenas seis meses depois. Apenas uma música, "Knives Out", levou 373 dias para ser completada e, ainda assim, não entrou na seleção final de Kid A.

Quando o Radiohead iniciou os preparativos para o álbum no interior da Inglaterra, em abril de 1999, a impressão era de que a banda não havia avançado um passo sequer desde o começo das gravações, em janeiro. O estúdio próprio ainda não estava pronto e, sem uma data final para terminar o disco nem pressão da gravadora, a busca ia seguir para sempre, sem chegar a lugar nenhum. "Humanos precisam de um senso de ordem. Quando há muitas coisas sem terminar, em quais você se concentra? Isso causa pânico. Várias vezes, tivemos reuniões em crise", revelou O’Brien.

Num desses encontros tensos, a banda decidiu que, se todos chegassem à conclusão de que não havia nada a ser feito, a derrota seria reconhecida e cada um seguiria o seu próprio caminho. No fundo do poço, o grupo resolveu dar uma virada. O momento mais crítico foi quando tiveram de aceitar que nem todos os integrantes iriam aparecer em todas as músicas. "Precisamos aprender a participar de uma canção sem na verdade estar tocando nenhuma nota", afirmou o guitarrista.

Com a situação finalmente entrando nos eixos, mais ou menos nessa mesma época o Radiohead descobriu a força da internet. O’Brien começou a escrever um diário das gravações no site oficial do grupo e rapidamente as atualizações sobre o progresso das músicas viraram notícias nas principais publicações. Aparições surpresa surgiram na rede, para a alegria dos fãs, que assim tiveram a oportunidade de entrar no universo particular do grupo no estúdio, por meio de discotecagens, bate-papos, teatro de bonecos e músicas novas mostradas com exclusividade. Em uma das atualizações no diário do site, O’Brien recomendou aos fãs que comprassem o livro No Logo (Sem Logos), da jornalista canadense Naomi Klein, que trata da invasão das marcas das grandes coorporações na vida moderna. O livro fez tanto sucesso entre os integrantes da banda que, por algum tempo, cogitou-se que o álbum receberia o mesmo nome. Foi daí que o Radiohead criou o conceito da atual turnê, uma gigantesca lona branca sem marca ou patrocínio de nenhuma empresa.



COLAGENS SONORAS

Concluído o estúdio próprio, a partir de setembro do ano passado o Radiohead passou a dedicar-se às músicas de Kid A em tempo integral. No dia 13 de dezembro o diário eletrônico de O’Brien anunciava que seis canções já estavam praticamente prontas. Seguindo a sugestão do produtor (e membro honorário) Nigel Goldrich, a banda dividiu-se em dois grupos. Um deles começava a criar uma seqüência ou loop ou até mesmo barulhos, e o outro tinha de continuar a música dali, mas sem usar instrumentos acústicos, como guitarras e bateria. "Quando dei por mim estava tocando um (teclado) Moog. Ou operando máquinas que nunca havia usado. Você literalmente se sente uma criança", exaltou-se O’Brien. Apesar de nenhuma das músicas dessas sessões terem entrado no disco, pode-se dizer que foi só então que todos entenderam as idéias de colagens sonoras que Yorke estava querendo dar ao álbum. "Acho que Thom faz parte da mesma linhagem de John Lennon, David Bowie. Ele tem um dom extraordinário", elogiou o guitarrista.

Com o término das gravações e o fim do inferno astral que pontuou o processo criativo, a banda planejou uma pequena turnê pela Europa em junho e julho para testar as novas músicas ao vivo, enquanto organizava a lista final das que figurariam em Kid A. Continuando com seu conceito anticomercial, os integrantes do Radiohead não permitiram que sua gravadora editasse singles do álbum ou forçasse a inclusão de alguma faixa na programação das rádios, para estimular a livre escolha das emissoras. No primeiro trimestre de 2001, o grupo deverá lançar um álbum com as 14 faixas que sobraram das gravações do disco ou EPs de tiragens limitadas com quatro músicas cada.

Kid A é provavelmente o último disco "tradicional" do Radiohead. De agora em diante, o quinteto pretende investir numa maior interatividade, usando principalmente a internet e lançando singles sem grande alarde. Pelo menos até segunda ordem. Se há uma lição a ser tirada de toda essa experiência, é que "certeza" é uma palavra que não existe no vocabulário de Thom Yorke.



O antimarketing da banda, que prevê shows sem marcas ou patrocínios, raras entrevistas e pouca atenção à mídia, pode funcionar como um eficaz meio de divulgação e sedimentar a aura de lenda viva do rock



Numa das tensas reuniões em torno do novo trabalho, foi decidido que, se todos chegassem à conclusão de que não havia nada a ser feito, a derrota seria reconhecida e cada um seguiria seu próprio caminho




Da angústia fez-se a luz
Radiohead / Kid A / EMI


Tudo faz sentido no quarto álbum do Radiohead. Pegue exemplos recentes e reflita: o que o Nirvana fez depois de Nevermind? O que o R.E.M. fez depois de Out Of Time? Kid A, com sua falta de poesia, com sua falta de guitarra, com sua falta de estrofes e refrãos, equivale ao que a brutalidade de In Utero significou para o trio de Kurt Cobain e à leveza semi-acústica que Stipe, Berry, Buck e Mills conseguiram com Automatic For The People. Ou alguém acha que não existe sofrimento em se tornar o maior expoente de um gênero musical, ser o progenitor da obra mais aguardada do ano? Ainda mais para uma banda que foi motivo de piada pela crítica quando apareceu com seu primeiro single nas paradas.

O disco é complicado? Sim, até indigesto, mas não deixa de ser envolvente e de esbanjar qualidades. Quem conhece mesmo Radiohead vai fazer com Kid A o mesmo que uma criança faz quando recebe um ovo de páscoa enorme, que pelo barulho indica estar cheio de bombons. A surpresa é que esse ovo do Radiohead é oco. Ou pode parecer.

Até o meio do disco, é possível arrancar exatas 19 frases completas e diferentes de Thom Yorke. Só, e com muito custo. A abertura, com "Everything In Its Right Place", é fenomenal, envolve pela repetição dos quatro versos. "Kid A", a seguinte, é incompreensível. A voz de Yorke passa por um vocoder do além que não dá a mínima chance ao ouvinte de entender algo. Faz lembrar Tortoise. Com uma linha de baixo ameaçadora, "National Anthem" prossegue a viagem com bateria jazzy e saxofones dissonantes. Bate uma vontade de chacoalhar o corpo como faz o vocalista, que completa mais duas frases. Vem "How To Disappear Completely", com cordas adulteradas, e o clima hipnótico e claustrofóbico da obra se acentua com os versos "Eu não estou aqui/Isto não está acontecendo". "Treefingers" não tem letra, só sobreposição de órgãos.

Aí você respira fundo, porque dos 50 minutos de duração só se passaram 25. "Optimistic" é a que mais se aproxima de algo que poderia tocar no rádio. E é bem quando você está pensando nisso que entra um epílogo chamado "In Limbo" e a canção bate os 8 minutos e 49 segundos. Não, não vai tocar no rádio. "Idioteque": essa pode até mudar o conceito das pessoas sobre o que é música, a obra-prima do Radiohead. Por cima de uma base eletrônica, Yorke parece estar narrando um acidente de avião ou de navio e põe o fã no meio da agonia. Alguns vão desligar o aparelho de som depois dessa. Outros ainda vão ouvir o loop humano de bateria que conduz "Morning Bell", as harpas e o clima Walt Disney de "Motion Picture Soundtrack" e uma vinheta, escondida e sem relevância.

Quem acompanhou o martírio que foi a confecção desse disco, talvez já estivesse esperando tamanha "esquisitice". "Ora, OK Computer não parecia nada fácil à primeira audição e foi o estrondo que foi", poderia se pensar. Mas, não. Kid A é um disco pós-Radiohead (recuse se tentarem vendê-lo como pós-rock). Aquele som que virou o som do Muse e de milhares de bandinhas mundo afora, não pertence mais ao quinteto que o criou. O Radiohead enxergou a situação e trilhou um novo caminho. Gênio.

Bonequinhos e nada mais
Se os cinco rapazes optaram por não ter single e escolheram fotos para divulgação em que estão de costas, com a mão no rosto ou se escondendo atrás dos instrumentos, o "descaso" com a imagem não poderia ser diferente nos clipes. Foram produzidas animações para as faixas "Idioteque" e "Morning Bell". Na primeira, a imagem de duas pontas de dedos ficam se mexendo em um fundo branco durante quase a totalidade da música. Até que o close vai se abrindo e o que pareciam ser pontas de dedos transformam-se nas pernas do bonequinho Kid A, o mascotinho inventado pela banda, que se assemelha ao que o Jesus Jones usava. Em "Morning Bell", um Kid A assume a bateria, outro o violão, até que todo o Radiohead fique representado pelos bonequinhos. O desempenho deles consiste no clipe. Simples assim.

Raspas e restos que interessam
O Radiohead produziu pelo menos 23 faixas no estúdio, das quais apenas dez foram selecionadas para entrar no disco novo. As descartadas acabaram num CD para o fã-clube, numa tiragem limitada. Confira o que ficou de fora:

"Instrumental"
Sem um nome fixo, esta faixa é um interlúdio instrumental composto basicamente de piano e bateria, com inserções de guitarras com efeitos fantasmagóricos e samples de pessoas conversando.


"Follow Me Around"
Balada sombria, começa acústica e depois do segundo refrão (que consiste em Thom Yorke gritando repetidas vezes "follow me around" - "me seguindo") ganha agitação com a entrada da bateria, para depois ficar lenta novamente e acabar com diversos efeitos.

"Nothing To Fear"
Baladona com a voz de Thom Yorke contrastando com um piano tocado quase sem ritmo.

"I Promise"
Mais uma balada, bem marcada por uma bateria marcial. O vocalista repete diversas vezes a frase
"I promise".
A música encerra com um barulhento solo de guitarra.

"Knives Out"
Quem assistiu a algum dos shows ao vivo do Radiohead na turnê do meio do ano apostava que "Knives Out" seria o primeiro single de Kid A. Não se sabe por quê, mas os integrantes da banda resolveram deixar a música de fora da listagem final do álbum. Pena, porque "Knives Out" traz um belo fraseado de guitarra, lembrando um pouco algumas músicas de The Bends, o segundo disco do Radiohead. Nessa versão, ela acaba com uma voz fina distorcida falando palavras sem nexo.

"Lift"
Outra música na fronteira entre a balada e o rock. Com um refrão pegajoso, também poderia perfeitamente ser um single de Kid A.

"True Love Waits"
Começa acústica, somente com voz e violão, e é uma das mais bonitas que o Radiohead gravou nas sessões de Kid A. Se estivesse no disco, tinha tudo para alcançar o mesmo sucesso de "No Surprises" ou "Fake Plastic Trees".

"Manowar/Big Boots"
Iniciando quase a capela, vai sendo preenchida aos poucos por diversos instrumentos e barulinhos engraçados, até cair num rock experimental levado por uma guitarra envenenada e um órgão que entram na metade da música. No meio, surge uma voz falando "fucking brilliant" ("maravilhoso"), entre outras coisas. Acaba com Yorke cantando "big boots" ("sapatos grandes") com voz chorosa.

"(Don’t Get Any) Big Ideas/Nude"
Gravada apenas com voz e violão, é uma balada que abre anunciando: "não vá imaginando muita coisa".

"You And Who’s Army"
Com um instrumental bem jazzy, lembra um pouco músicas de cabaré da primeira metade do século.

"Dollars And Cents"
Uma das músicas mais experimentais gravadas nas sessões de Kid A. Destaque para o baixo acústico que carrega a canção.

"Egyptian Song"
Outra com um instrumental puxando bastante para o jazz. Piano e baixo acústico se contrapõem à voz sofrida de Yorke.

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